Imagine se o governo, reconhecendo o grave problema da fome, decidisse distribuir cestas básicas compostas apenas por sobremesas. Muito provavelmente ninguém recusaria doces e pudins, afinal são uma delícia. Mas certamente essa medida não resolveria o problema da fome. É exatamente isso que acontece quando o Distrito Federal implementa tarifa zero apenas aos domingos e feriados.
A analogia com a fome não é descabida. Para uma família que vive com meio salário-mínimo, o gasto com transporte consome cerca de 20% da renda mensal. Esse impacto devastador não acontece só aos domingos, quando a maioria das pessoas saem para ear, mas todos os dias, quando precisam trabalhar, levar os filhos à escola, buscar atendimento médico ou procurar emprego.
A contradição da política atual fica evidente quando observamos que os maiores obstáculos de mobilidade urbana se concentram exatamente nos dias em que a tarifa continua sendo cobrada. Uma mãe que não consegue levar o filho ao pediatra numa terça-feira porque não tem dinheiro para a agem não será ajudada pela gratuidade dominical. Um trabalhador que perde oportunidades de emprego por não conseguir pagar o transporte para entrevistas durante a semana também não.
Os dados de outras cidades brasileiras comprovam que a tarifa zero universal gera as transformações estruturais necessárias. Em Paranaguá, o comércio local cresceu 30% após a implementação completa. Em Caucaia, o faturamento aumentou 25%, gerando mais arrecadação municipal. Em Luziânia, vizinha ao DF, o comércio varejista registrou crescimento de 36%, com R$ 25 milhões adicionais circulando na economia.
Estes impactos positivos só acontecem quando as pessoas podem circular livremente durante toda a semana, não apenas nos finais de semana. O aumento da demanda documentado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, que varia de 33% a 371% nas 25 cidades estudadas, reflete o uso cotidiano do transporte para trabalho, estudo e o a serviços essenciais.
Constituição não tem dia e horário de funcionamento
O direito ao transporte, garantido pela Constituição, não deveria funcionar apenas aos domingos. Quando uma família não consegue ar serviços de saúde durante a semana por falta de dinheiro para a agem, a gratuidade dominical não resolve o problema real. Os estudos mostram que a tarifa zero reduz significativamente as faltas em consultas médicas no SUS e diminui filas de espera, mas estes benefícios só se materializam quando a gratuidade está disponível nos dias em que os serviços funcionam.
A redução das desigualdades urbanas também não acontece apenas nos finais de semana. Os trabalhadores de baixa renda que moram nas periferias precisam ar o centro da cidade durante a semana para trabalhar, estudar e resolver questões burocráticas. A integração social entre diferentes classes econômicas depende da mobilidade cotidiana, não do lazer dominical.
Viabilidade comprovada
O argumento da inviabilidade financeira não se sustenta. O DF concede R$ 9 bilhões anuais em isenções fiscais a empresas, enquanto o custo estimado da tarifa zero seria de aproximadamente R$ 4 bilhões. O sistema já é fortemente subsidiado pelo governo, tornando a transição para a gratuidade total uma questão de reorganização das prioridades orçamentárias.
O número de cidades brasileiras com tarifa zero cresceu de menos de 20 em 2014 para 145 municípios em 2025, beneficiando mais de 5,4 milhões de pessoas. Este crescimento demonstra que a política é viável e que outros gestores compreenderam que soluções parciais não resolvem problemas estruturais.
Para resolver o problema de verdade
O governo do DF já itiu que o transporte pago é um problema ao implementar a gratuidade dominical. Agora precisa ter coragem política para implementar a solução completa. As evidências de outras cidades, a viabilidade financeira comprovada e os impactos sociais positivos documentados mostram que a tarifa zero universal não é apenas possível, mas necessária.
Assim como ninguém resolve a fome distribuindo apenas sobremesas, não se resolve a crise de mobilidade urbana oferecendo transporte gratuito apenas quando os trabalhadores menos precisam dele. É preciso garantir que o direito constitucional ao transporte seja exercido por todos os cidadãos, todos os dias da semana. Só assim o DF deixará de distribuir “cestas de sobremesas” e ará a oferecer cestas básicas completas para saciar a fome de mobilidade da população.
*Gabriel Santos Elias é cientista político e Secretário da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Legislação Participativa da CLDF.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.